Para ser possivel uma recuperação completa a dor deve ser esquecida. É muito dificil não lembrar pessoas que lhe estão associadas, desde bombeiros a médicos, passando por todos que deram carinho e respeito em situações traumáticas. Mas o tempo dá todos os dias uma sensação de afastamento e já longe está a lembrança de locais e de esforços feitos para além das forças. Aos poucos adquiri-se o controlo do cotidiano e o coração vai pulsando de acordo com as leis da vida. Há medo muitas vezes, pois não é fácil estar tão perto da morte. Nesse momento não existiu temor, mas uma paz profunda, entregue, como estava, a todos que me salvaram. E à Vida que me deu mais tempo para cumprir o que falta, devo agradecer este espaço até ao regresso a Casa.
Diz o povo que os trevos de quatro folhas dão sorte a quem os possui. Estas ilusões ajudam a viver e dão confiança a quem espera da vida um esforço menor e que tudo que ambiciona seja facilmente obtido. A isso chama-se sorte e se tiver o trevo melhor. E se o povo diz, como se pode contestar. Há também o costume de dizer que a voz do povo é a voz de Deus. Assim é melhor possuir um trevo ou um vaso cheio de trevos e esperar sentado. Talvez por isso a vida aqui tem sido tão dificil, bastando crer que vai melhorar. Para recuperar a saúde não basta querer, é preciso muita força de vontade e também ter dinheiro, necessário ao conforto e amparo que cada doente vai pedindo. Não há trevo que nos acuda, nem há sorte que nos valha. Apenas a sorte de poder olhar a beleza de uma planta rara que se fecha sobre si à tardinha e se abre à luz da manhã. E morre no outono e renasce na primavera. Esta é a mensagem: tudo renasce e tudo pode ser belo .
As árvores cortam a visão do jardim na sua totalidade. Mas como sem elas o jardim não existiria, temos de encantar-nos com os espaços abertos e a beleza que cada um deles contém. Assim ,passeavamos de mãos dadas pelas alamedas circundadas de cores, com o verde da relva a entrar no pensamento, dando à conversa a leveza própria dos momentos felizes. Era um dia de primavera. E, tal como as nossas vidas, resplandecia de luz. Tudo seria eterno até ao inverno. O jardim seria outro naquele local e nós, também diferentes, não voltamos a vê-lo. Ficou esquecida a conversa, o calor das mãos perdeu-se na memória. Nem os nomes são lembrados. Como tudo na vida, o princípio e o fim são novelos sem ponta visível. O jardim ainda tem nome. É o que resta.
No príncipio do sec.XX eram vendidos uns fascículos com o título de "Os serões", que para além de contos de autores conhecidos também ensinavam costura, bordados, etc. Os contos infantis eram acompanhados de desenhos sugestivos, tudo apto ao sono das crianças. Mas um ficou na memória, pelo medo que causava. Chamava-se "Os manos papões", sem figura humana, apenas uns sacos pretos, onde eram mantidos o avô, os netos, o criado, para serem comidos quando os Papões tivessem fome. O conto era lido por uma das tias e acabava assim: "e come-se a criança". Aqui era a sensação de terror, ouvida vezes sem conta, mas sempre pedida, não sei porquê. Essa coleção está hoje na Biblioteca da Câmara Municipal de Èvora, em homenagem ao meu Avô, que ali foi vereador, contrbuindo para o desenvolvimento da cidade. Pela sua raridade ali se manterá, mas Os manos papões serão sempre vivos em mim.