Muito tempo passou e o rapaz, já homem, só pensava em vingança. Pouco falava e a familia atribuia aquele silêncio à dor que lhe ficou na alma. Mas ele trabalhou para ajudar a Mãe e para completar o seu projeto maior. Comprou uma passagem para Lisboa e horas antes da partida entrou de rompante em casa do vizinho, homem já velho, rodeado de filhos e netos. Apontou a arma e disse: esta é por conta do meu Pai. Fugiu e só almoçou na minha mesa oito anos depois. Viveu no silêncio, falando apenas o necessário. Foi taxista. Talvez por isso me tenha encontrado. Do que li, foi sempre infeliz. O seu coração não sabia amar.O ferro em brasa do ódio queimou aquele pequeno ser. Tal como foi sugerido, levei o saco para o mar. Quarenta anos devem ter passado e só agora escrevo sobre Ninguém. Guardei respeitosamente o silêncio de um assassino. A vingança é sempre uma dupla culpa: não podemos saber como se sentiria se tivesse perdoado, se tivesse chorado pelo morto e pelo vizinho, que viveria no remorso e no temor a Deus. Vidas tristes.
Após um erro de impressão, aqui estou de novo e pela terceira vez, a tentar relembrar o que li, sem juizos mas com muita emoção. Com os livros havia um cartão que dizia, se a memória não me falha, " pode deitar ao mar ou escrever um livro. Até. Ninguém. " A pesar da curiosidade, só passado algum tempo tive a devida privacidade para ler aqueles pequenos cadernos. Muitos erros ortográficos e palavras ilegíveis, mas os sentimentos à flor da pele. Para transmitir tantos dias de escrita, vou sintetizar a vida do autor. Começa no interior do Brasil, quando uma família numerosa vivia numa casa pobre, sustentada a pulso pelo Pai. Num dia quente, três crianças brincavam soltando pipa, enquanto o Pai descansava na rede. Nisto entra um vizinho aos gritos, raivoso, direito ao Pai, que logo o enfrentou, falando em dinheiro, com palavras dificeis para os ouvidos infantis. O mais velho, de sete anos, venceu o mêdo e foi para junto do Pai. Depois ouviu-se o estrondo de um tiro. O Pai estava no chão e o vizinho fugiu. Gritos e gente, muita gente foi aparecendo. No coração de sete anos o ódio foi crescendo. A promessa foi imediata: eu vou matar aquele homem. O resto conto outro dia, como um folhetim.
té
Em tempos conheci alguém que se dizia Ninguém, com letra grande, se a palavra fosse escrita, porque não conseguia comunicar no meio onde vivia. Todos os dias escrevia um pequeno diário, com uma letra irregular e a tinta azul. Quando saía, guardava-o numa gaveta fechada à chave, levando consigo a chave no bolso interior do casaco. Sempre amável com os vizinhos, apenas dando a salvação em voz baixa. No dia em que me foi apresentado, eu almoçava só numa esplanada lotada à beira mar. O empregado pediu-me para instalar aquele cliente na minha mesa, dizendo ser assiduo e muito respeitado. Acedi. Mal me olhou deu um suspiro e com o rosto alegre afirmou que me conhecia. Não sabia o meu nome. Mas teimou ter já falado comigo numa cidade onde eu nunca tinha ido. Reduzi-me ao silêncio e continuei a almoçar. Entretanto reparei na atenção que lhe era dispensada. Após beber o café pedi a conta. O empregado, um pouco intimidado, disse que a conta estava paga pelo meu companheiro de mesa. Perante o meu desagrado, ele começou a falar numa voz agradável, contando-me a sua vida desde que chegara a Portugal e que tinha um diário que gostaria que guardasse depois da sua partida. Aguentei quase uma hora e então levantei-me. Sem me apresentar, despedi-me e parti. O homem era mesmo tonto e esqueci esta aventura. No fim do verão voltei ao local para tomar um café e respirar o iodo das marés vivas. Para meu espanto, o empregado reconheceu-me e trouxe-me um saco com pequenos livros que lhe tinha sido deixado pelo Ninguém. Já os li e em breve dá-los-ei à estampa. Fui autorizada pelo seu autor. Até breve.
Muito do que escrevo não é pensado. Apenas sinto que algo me afectou e tento escrever sobre isso. E depois permito-me divagar sobre o tema, desenvolvendo o sentimento que julgo verdadeiro. O que sei sobre a dor de alma está em mim guardado e cada um sabe de si. Mas há uma dor que não sendo nossa, doi também em nós. è a dor dos outros quando os vemos no limite do ser humano. Orei e chorei por quem desconhecia, até a noticia ser pública e parecer mentira, de tão violenta. Alguém que vemos em nossas casas, cuja voz conhecemos e cuja dor de alma é superior a todas que eu vivi. Desamparo total. Perda total. Vida em ruínas. Que do Céu venha alguma força para uma mulher sem futuro.