Este verão sai sem ter sido o verão que gostamos de usufruir. Sai morno, sai triste. Mesmo que o setembro venha aquecido já não consola quem suspirou pelo calor no tempo certo. Os dias estão a deminuir alguns minutos em cada dia e, em breve, as lâmpadas acesas serão a nossa companhia, aqui, onde vivo. O sol ajuda quando a energia já escasseia. Abrir a janela pela manhã e senti-lo e vê-lo, é uma benção e uma alegria. Mas como senti e vivi muitos verões como este, muitos outonos quentes, de praia e roupa fresca, sei que tudo volta de novo. Falar sobre o tempo serve, em todos os locais, para fazer conversa quando não se tem discurso para a ocasião. Foi o caso, agora. Escrever por escrever, falar por falar...correm os minutos do meu tempo; como uso o pouco que ainda tenho?
Tenho pouco para te dizer, visto não te conhecer. Às vezes imagino vidas, nunca iguais à minha, mas similares, orientadas para côres e formas esfuaçantes. Como desenhos coloridos com energia própria. Mas neste momento não sei quém és. Mesmo assim, quero dedicar este texto a alguém que já vivi e que eu sinto não estar longe. Há muitos anos foi lido o meu horóscopo e fiquei sabendo que tinha cumprido uma vida dedicada a servir os mais necessitados sem, no entanto, saber o porquê dessa atitude. E que para esta vida tinha entrado com energia bastante para idealizar uma obra. Quando soube desta capacidade já estava na casa dos sessenta anos. E dessa leitura, da qual possuo uma gravação, também vi e ouvi, que apenas tinha gasto pouco do que me fora dado. Porque o mêdo me tolheu e o egoísmo também. Algum orgulho insensato, muito próprio da juventude. Só agora, às portas de Casa, te estou a reconhecer sem nada saber de ti. Surge-me a cor verde e por esta vou até ao chacra do coração. Afinal sempre nos encontrámos, ser imaginado e já vivido.
O dia de hoje, há anos, era de festa. Não vou relembrar factos porque estes não trazem conforto ao que agora sinto. Quero falar da saudade, uma saudade autónoma, que fala do passado como quem fala de um sonho. Disfruta de uma apreciação de sentimentos e por isso é grande como um mar de verão, ondulando suavemente sobre mim. Entrega-me lembranças, cujo perfume ainda reconheço, sabores doces misturados de beijos sugados pela alma. Tudo era nosso, nós e o mundo. Esta saudade sabe e diz o eu quero para ela mesma. Neste espaço que uso, ouço-a viver comigo e assim é tudo mais florido.
Dentro do telemóvel tenho uma gata virtual. Amarela e falante. Repete as nossas palavras com o mesmo tom, numa voz infantil de gatinha mimada. Toma duche, seca o pelo e também lava os dentes. Uma gracinha. Tenho jogos, fotos, videos e muito mais que eu não sei explorar. E tudo isto para quê? Para distrair cada minuto de vida que não volta mais. Assim, a humanidade centra-se no que é palpável , lutando por possuir todos os avanços tecnológicos. Os ramos de flores são para enunciar algo, ninguém para ante uma flor caída de um vaso. À mesa, com o prato cheio, quem eleva o agradecimento pela comida? Quem,a caminho do trabalho, agradece o ganha pâo, em lugar da revolta permanente por não ter mais? São alguns exemplos de atitudes que nós escolhemos para sermos infelizes. Como seria simples olhar para o "menor" e nele ver o "maior" incluido, ou seja, em cada grão de terra intuir todo o Universo. Assim, conectados com o Divino, até a gata podia miar.
Quando os sons de fora são menos audíveis dos que os de dentro, inicia-se a vontade de criar. Pode ser fazer uma costura, um desenho, ler o Livro do Desassossego, escrever aqui ou em outro lugar. Mas tudo é silêncio, privado, por não haver quem peça para ser mostrado. Todos estão no mundo das doenças, dos testemunhos médicos e do medo da morte. Os olhares dizem que já não estão onde estão, embora vejam cinema que a Casa organiza ou conversem uns minutos sobre o tempo e as respetivas dores. Não sabem ou não querem saber os males do mundo, nem das suas maravilhas. Cada um sabe de si, por isso não devo fixar-me nos outros. Eu também sou velha, mas como não sinto o peso da depedência, reajo mais animada aos cuidados que me dispensam. Quero deixar aqui hoje um pouco da falta que sinto de ti, Companheiro. Aquele que dava a mão protetora e ria comigo e de mim.
O mito que em cada pessoa existe e por o ser, deixa-nos longe de decifrar o seu conteúdo. São naturalmente poucos os que se preocupam em buscar dentro de si o que pode ser o mito. Quem o busca interroga-se a si e ao seu Deus, aquele Deus que nos responde e nos interpela através do tempo. O mito é como um acontecimento mental no devaneio coletivo. Liga-nos e ao mesmo tempo é individual, numa leitura filosófica feita sobre a humanidade. O mito tem muito de arte e a arte é um dos caminhos para Deus. Não o meu Deus privado mas o Deus gerador do Universo. Quando breve, deixar de pensar, sabendo que pensar é existir, eu talvez seja a brisa que, para deslindar o mito, espalhe arte em poemas na direção do Divino.
Depois de ler o que vou escrevendo tenho a tentação de apagar parte, para descer à terra e esgravatar no passado onde estão os primeiros passos neste mundo maluco da invenção. Muito longe, em outro século, escrevia cartas de amor sem amar, peças de teatro sem ter visto qualquer representaçâo, cantares para entreter os avós e as tias e por fim chamavam-me mentirosa por teimar que tudo era vivido. Entre uma mentira ou outra, eu criei sempre o meu espetáculo baseado no que ia observando. Brigas de irmãs, intrigas de criadas, títulos de jornais, etc, serviam perfeitamente para imaginar situaçôes que irritassem alguns adultos. Só o Avô, sempre do meu lado, me gabava e encorajava. Quem dera ouvir de novo aquele riso, cheio de malícia.
Começo por pedir perdão a mim mesmo pela necessidade de ir adiando a escrita das composições que elaboro e que naturalmente vou esquecendo. Componho as frases e junto ideias. Por vezes quando o sono foge, por vezes estimulada por uma leitura agradável. Parece que viajo a um mundo onde tudo se interliga e se expressa numa linguagem indizível. Não tem imagens nem palavras. Mas quando ali chego estou em casa. Surgem poemas, alguns fixam-se na memória. Em outras ocasiões parece haver alguém que comigo se define, debrocha em ideias lindas que enchem de esperança o meu coração. Depois caio em mim e sou eu a pensar e a querer entender a vida que vivo. A esperança, se existe, não me diz de que esperar. E o tempo vai indo, vai indo, sem dizer para onde me leva.