Quando os passos
me levavam ao rio
e por estar ali
enchia o peito de assombro.
E ainda por pisar o lugar,
os olhos guardaram todo o azul
que me envolvia.
Eu não sabia
como esse tempo
era abençoado por tudo ser possivel.
Agora, nem o rio existe
para além do que fui.
Nestas andanças, para onde vou, para lá do que o meu corpo pode suportar, como se voasse para lá de mim, no desejo de encher a Terra de Céu. Para lá do infinito imaginário que a minha alma projecta, ser alguém de asas para ensinar a ser quem se quer Ser. Difícil de pensar, difícil de agir, difícil de intuir. Só a Vida sabe para onde, por onde ir e como ir. Só irei estar onde tiver de estar. Só farei o que tiver de farei. Por isso espero que a força da Vida viva em mim.
Esta pancada no vidro, mais o som da água que escorre por ele, dão-me frio mesmo aquecida. E o frio vai até ao íntimo do corpo que eu não sei aonde está mas sei que está. Por isso estou necessitando daquela mão quente que foi passado, do abraço carinhoso da Mãe que há muito perdi, enfim daquilo que a todos consola - Amor. O inverno, que ainda não chegou, tem isto. Parece que aumenta as carências e deixa cada um de nós a chorar pelo Sol. E também pela força da mocidade que me fez lutar e viver o meu caminho. Aqui estou gastando o meu tempo a sofrer com a chuva e com o silêncio colado às paredes do espaço onde vivo.
Dia de S.Martinho. Festejo em casa de velhos. Para quê? Para os alegrar, para os distrair? Mesas redondas, cadeiras de rodas e bengalas encostadas, tudo bem decorado. O coração da Casa a aquecer os hospedes debilitados e nós envoltos nesse carinho que se aceita como lógico e necessário. Empregados de mesa atentos para aligeirar qualquer deslize. Algumas conversas por outras mesas como ruído de fundo. Eu ocupei um lugar vago numa mesa já cheia. À esquerda e à direita estavam duas senhoras de noventa anos, ambas surdas e silenciosas. Dediquei-me ao que serviram e apreciei a refeição. Uma sopa de abóbora servida em terrina de abóbora que brilhava pela sua cor, como uma luz acesa. Um prato de carne muito leve, com legumes e fruta e uma sobremesa deliciosa com batata doce embrulhada em massa fina, como uma trouxa, acompanhada de sumo de maracujá. Depois um café fraco, como convém. E uma saudade imensa a sobrepor-se ao presente, que sendo bom, abre janelas ao passado para todos serem sentidos e recordados.
Entreguem as minhas cinzas ao vento. As energias libertas pelo fogo serão partículas que o vento vai dispersando, como sementes de outros eus ou nós, não sei, mas queria que fosse. Tudo se renova, nesta constante atividade de ser e de não ser. Todos os princípios serão apenas continuações para além de todo o conhecimento humano. Tal como as sete notas musicais, produtoras de todos os sons desde o início dos tempos, as ideias sobre isto ou sobre aquilo, aparecem feitas na nossa mente, é só decifra-las e guarda-las. Por vezes são úteis a um fim específico e então devem ser aproveitadas. Podem ter vindo com o vento, numa energia libertada pelo fogo ou por um beijo de amor. Quem sabe?
Um pequeno ribeiro nasceu no alto de uma montanha. Pela encosta abaixo cresceu muito feliz. O sons que produzia saltando sobre as pedras atraíam o cantar dos pássaros, o sussurro do vento e o riso das crianças. Submersos, numerosos peixes nadavam e se reproduziam nas suas águas. Inundava os campos e matava a sede a inúmeras criaturas. A sua felicidade era tanta que o orgulho pela sua existência foi crescendo a ponto de se julgar único no mundo. Um dia de verão, quando encontrou grandes rochas dificeis de ultrapassar, ouviu um murmúrio vindo das pedras que dizia: procura o deserto, é o fim do teu caminho. Cheio de alegria e orgulhoso de si, saltou as últimas pedras e entrou numa planície. Cantando, levou as suas águas sem pensar naquele som misterioso que o ía impelindo para o desconhecido. Assim chegou frente ao deserto onde as suas águas se perderam na areia quente. O pavor, até aí desconhecido, tomou conta do ribeiro. Não podia recuar mas não queria acabar alí. Então ouviu de novo o som que lhe dizia para se entregar ao vento. Isso não posso, deixo de ser eu, o mais belo dos ribeiros. Escolhe o vento. Porque ele leva o teu vapor e como nuvem te deixa caír em chuva e de novo serás tu. Enquanto pensava, a areia, ávida de água, sugava-o sem parar. O murmúrio falou. Porque tens medo? Aqui desapareces e no vento viverás. Então o ribeiro chamou o vento. Este levou-o numa rajada até ele se sentir nuvem e recordar como tinha sido antes de ser ribeiro. Uma nuvem enorme envolveu-o e então as suas águas desceram, em chuva, sobre a terra. Umas gotas ficaram juntas. O ribeiro nasceu de novo. É por isto que se diz que a forma como o rio da Vida vai prosseguir a sua vigem está escrito nas Areias.