A criança entendeu que existia um caminho. Por ali foi até que encontrou uma biforcação. Parou e pensou que escolhendo não teria ajuda de ninguém. Já sabia ler e contar e assim escreveu no chão de terra o seu primeiro pedido de ajuda. Esperou cantando. Uma nuvem desceu do azul e ficou sobre uma árvore. Em poucos minutos a ajuda apareceu na terra da estrada e dizia: só tu podes decidir a tua vida, portanto a minha ajuda é dizer-te que se escolheres o caminho da direita ficarás sempre em dúvida e se o da esquerda fosse melhor? O ser humano duvida da Vida, mas Ela sabe o que é bom para ti. Não tenhas medo, segue o teu coração. A criança havia adormecido. Acordou com a ideia de qual o caminho que devia escolher e nunca soube porquê.
Estamos a caminho do inverno. Entra hoje o outono que eu amo, pela luz suave e pela cor das folhas e dos frutos.Mas os dias pequenos deixam nos corações alguma tristeza porque a noite já está atrás dos telhados, com pinceladas de vermelho até ao mar. Esta terra é fertil em cores, que vão buscar ao mar os brilhos do céu. Nesta prosa poética encontro palavras perdidas na memória e assim vou deduzindo que este gosto pela escrita sempre esteve presente na minha vida. E quando alguém, como hoje aconteceu, me estimula a continuar, sinto que não há erro nesta forma de felicidade. Cada frase tem um sentido e todos os sentidos são dádivas que eu recebo com humildade e alegria. O verão diluice no tempo
Por isso há visitas, almoços com gente nova e muitas crianças. São netos e bisnetos em companhia aos que amam. Também recebo, mas pouco. Alegro-me por ver como é bom estas dádivas, recebidas de braços abertos. As semanas voam portanto há domingos repetidos dia sim dia não. Como vai longe o tempo em que não havia tempo, o domingo era o tempo da carne assada à mesa da avó Amália e logo havia um tempo muito longo de uma escola, sem fim nem alegria. Os transportes eram escassos. Adultos e crianças iam a pé em caminhos degradados, de casa em casa, ora uma avó, ora outra, com ou sem vontade, visitando todos numa praxe social e também de amor. E o tempo passou sem pensar nele como hoje se pensa. O tempo de hoje vive dentro do tempo antigo, por vezes com saudade, por vezes com revolta. Tudo porque não sentíamos o tempo a sugar-nos, a levar-nos para um tempo novo, onde o lugar não existe e o tempo deixa de ser memória.
O céu de um azul índigo. A brisa da manhã suavisava o calor. Dia de verão, feito de conforto e de beatitude. Agradeci o transporte e fiquei só comigo. Somos tantos dentro e fora que pareço tonta. Mas o estar só comigo, no meio de gente, dá-me asas, faz-me feliz. Esqueço a idade mas vou devagar, amparo-me onde posso e decido. É aí que me encontro, na recordação das vivências, liberta de conselhos e de sugestôes. Escolhi o lugar para almoçar. Agradavelmente satisfeita, ouvi e analisei as pessoas que também almoçavam. Que diferença entre elas e eu quando trabalhava! Desde a roupa aos comportamentos, desde os assuntos até à linguagem, tudo parece outro mundo. A liberdade tem cheiro, tem som, tem cor. Estas pessoas não devem saber como o "parece mal" é castrador, é inibidor. Gostei de ver e de sentir como se vive à vontade com a vida.
Assim me disse o Amigo que entregou um pequeno embrulho, com laço amarelo. Não abri e guardei para outro dia me alegrar. E dia após dia estive feliz porque tinha um brinde. Fui esquecendo e assim passaram anos. No fundo da gaveta brilhava o amarelo da fita chamando por mim. O Amigo, lá no céu ficou em silêncio até hoje, quando eu toquei naquele papel envelhecido. Abri. Uma pequena caixa branca desfez-se nos meus dedos e nada havia dentro dela Apenas um suave perfume me envolveu. A voz suave que não sei de onde vem disse: abriste e viste o conteúdo da mensagem. Agora procura a verdade na tua alma. Só o invisivel é teu e te faz feliz. Não sei explicar mas achei que estava no caminho.
Por três semanas estive sem acesso à rede. Senti uma falta estranha, uma inibição que me causou um sentimento dificil de definir, quase revolta, quase prisão. Depois resolvi gerir essa falta com um raciocínio simples: quantos anos vivi sem tal coisa? Pois não vou pensar que ela existe e usar o que tenho. Assim vi mais TV, escrevi sobre as minhas lembranças e analisei como nos submetemos a disfrutar o que vai surgindo ficando refens de cada novidade. Há muito que explicar sobre cada sentimento de dor ou de alegria. De nós, humanidade, tudo é possivel. Eu não sei responder a perguntas que a mim faço em cada dia que aqui estou. Estarei já condicionada por todas as alterações à vida que vivi? Talvez seja um hábito ou uma necessidade? A lingua portuguesa é cheia de sofismas. Dificil é defini-los.
Fim de um dia muito quente. Dificil respirar. Recuperar o ritmo cardíaco e confiar na noite. Chamas sobre tudo que arde, vento rodopiando ao capricho de uma natureza sem piedade. Emocionalmente dificil ouvir e ver o que a TV transmite. Portugal de rastos. Como obter o oxigénio necessário a tantos corpos? Quantas décadas para se repor o que se perdeu? E os riscos que se correm para salvar vidas, animais e bens? As perguntas não teem fim e a dor também não. Minha amada terra, quem dera entender os desígnios do destino de todos e de cada um, embora saiba que sou apenas uma formiga impotente neste profundo mistério.