Abriu-se a porta do espanto e eu entro. Sou nuvem pequena e vou atraída por outra nuvem grande e densa. Incluo-me nela e cheguei a casa. Confortada, conheço uma paz infinita, feita da visão de tudo que vivi e viverei. Uma visão mágica entre pessoas que me eram familiares desde o meu príncipio. Os sons são audiveis. O coração bateu mais forte. regressei à cama bruscamente. Não dormi até ser dia.
Da mesa de rodas vem o cheiro de mãe. É o prato com bolachas caseiras, são o bule e as chávenas Vista Alegre, é o tom da conversa, o sorriso meigo. Ainda contemplo as sobras das casas, nada de valor, apenas o necessário em visão do trabalho. Depois o mais pessoal ou seja, quadros, desenhos, livros, muitos livros, E os poemas em páginas soltas ou agrupados, numa tentativa frustada de impressão. Falta dizer que a música ainda é relevante. Tudo são sobras de mim, como já foram de outros. Tudo isto pertence ao planeta Terra, como nossa guardiã. Serão dispersos, serão apreciados, serão úteis. Ou transformados. Assim se dilui uma pessoa ou muitas pessoas na memória do tempo que o tempo vai devorando.
Durante muitos anos escrevi cartas. Por vezes diariamente. Escrevi e recebi. Ambos gostavamos de cartas de amor. Ele em viagens de trabalho e eu porque sempre gostei de escrever e descrever os estados de alma e os seus reflexos. Foram anos de contacto intenso através do único meio que havia para unir, "falar" sobre alegrias e sobre a vida de cada um. Havia o telefone apenas para breves conversas. Que namorar ao telefone ficava despendioso. Um dia queimámos todo aquele papel, repleto de belos textos íntimos, dignos de serem impressos. E assim corre a vida, cheia de lembranças e de saudades.
Tudo muda quando se é responsável pela saúde e pela vida em cada dia. Não posso dormir mais uma hora, não posso esquecer da injeção que doi, não posso alimentar uma dieta de fome e não posso fazer uma dieta de fartura. Devo medir, comparar, rejeitar o que gosto e sentir quando tenho de aplicar a substância que tanto mata quanto salva. Prova que a vida está comigo e me está amparando para viver mais e melhor. A parte negativa que citei é de minha responsabilidade, a parte positiva é de quem soube usar o cohecimento para ajudar milhões de pessoas. A insulina é a chave que abre a porta do pâncreas ao açúcar que carrega a energia que, por sua vez, a limita na corrente sanguinea. Milagres todos os dias...
Me acho, como Manuel Bandeira, um pequeno trem mancando entre todas as paragens, até ficar vazio, vazio, vazio de todas as gentes, do último, que só no vinho encontrou coragem. E o trem parou na abordagem das portas fechadas até de manhã. Inté, disse o bêbado ao trem vazio...Quando será a minha manhã? Tudo pode ser poesia se a ideia for a palavra que a defina. Vazia é a palavra que eu escolhi para lembrar o poeta que, de muito longe, soube espalhar poesia pelo mundo de língua portuguesa.