Almocei sózinha a um canto da esplanada. Retomei o prazer de comer só entre muita gente barulhenta. Mais o prazer de comer com as mãos, chupando cada ossinho do frango grelhado com batatas fritas, quentes e crocantes. Depois o bom café e a liberdade de estar e de sentir a minha vontade. Tenho quase noventa anos e ainda não perdi esta gana de viver como se nova fosse. Fiz compras, chamei um táxi. Um grande esforço sem ter amparo, mas fui. Já falei das pessoas, do ambiente e do meu lugar nesta época social. Mesmo estranhando as diferenças penso voltar esta semana.
Cheguei até aqui para ver todas as vidas, as minhas e a de todos que comigo se cruzam. Ou no dia a dia ou num jardim. Invento tudo. Encho o olhar do espanto das palavras, das modas, das novas atitudes. Daquelas gentes que me angustiam pelas certezas que demonstram. E pela sabedoria ou pela ignorância. Quando estou só entre muitos, ouço conversas sem sentido para mim. Usam termos de outros idiomas e usam palavrões com naturalidade. Então vejo como sou alguém fora do tempo, estando dentro dele. E analiso o que posso ver e sentir, eu mesma. Um passo, um futuro. Umas horas para entender ou dormir?
No sábado almocei em família. Festa de aniversário, com Patricia a animar todas as pessoas que estavam perto. Esperta e feliz, nos seus dois anos de vida. E nós com ela e por ela. Na segunda feira fui almoçar com duas residentes com quem me dou bem. Estivemos numa esplanada, com arvoredo à volta e boa visão de rua. Não havia vento e assim rimos e conversamos sobre a boa comida e ainda de sentir alegria de viver. Mas o meu grande prazer é quando estou só a gozar a liberdade de ainda poder decidir sobre a minha vida. Em breve vou dar este prazer a mim mesma, qual aventura de velho.
A composição dos textos, a motivação, o valor atribuido aos mesmos, tudo isso eu mentalizo antes de usar a escrita. Mas ao começar a escrever, aparecem variáveis que induzem o projeto inicial a coisa nenhuma e o que pensei fica confuso e sem sentido. Por vezes desisto, outras como hoje, confesso a situação deprimente. Gosto de raciocinar com lógica e com poder de síntese. Este gosto foi ensinado pelo meu Avô, que foi professor do Liceu de Évora. Dizia que as mulheres não usavam a lógica e por isso não sabiam discutir ideias. O machismo cegava os homens mais cultos. Devia pensar que eu era burra, quando me ensinava teorias e dogmas que eu já sabia por intuíção e leituras proíbidas. Mas aprendi muito com ele. Hoje é uma saudade, uma nuvem apenas.
Partindo do principio de que só a experiência nos ensina alguma coisa, porque então decorar, estudar e pensar? A leitura é a grande ferramenta mas não é a experiência que a vida nos obriga a viver. A forma que nós escolhemos em cada ocasião é a grande fonte de conhecimento e é dela que tiramos o nosso futuro. São as nossas pegadas que ficam depois de partimos. O que fica pode ser útil ou não. Lembrado ou esquecido. Claro que todos queremos ser lembrados. Faremos o suficiente ou não? Uma vida, vivida no bom sentido, com respeito e com responsabilidade, será lembrada da mesma forma? Porque olho com tanta atênção para estes assuntos que não domino? Fará parte da experiência?