É domingo e chove. A luz do dia é baça, cinzenta e triste. A hora foi atrasada em sessenta minutos. E eu continuo presa a este quarto, onde me trazem as refeições à hora certa. O jardim é um poço de silêncio, apenas cruzado por aqueles que para nós trabalham. O medo de um vírus assassino tomou conta do mundo. Milhões de pessoas estão doentes e mais de um milhão já partiram da Terra. Será que a humanidade vai aprender a lição? Muitos de nós apenas querem regressar à boa vida que tinham sem olhar para as concequências dos seus actos. O sol está a afastar algumas nuvens e a chuva parou. A brisa entra pela janela aberta com a esperança de que tudo melhore, para a Natureza e para os humanos.
Nesta parte da minha história, eis que descobri que sou uma ilusão do ser, uma energia que se movimenta, interferindo assim com outras semelhantes. Imagino o corpo, sem mim, a andar por aí, tal qual um boneco de barro, feito pelo acaso. Eu fico com o pensamento. a tal energia em movimento. Integro-me no que é como eu e deixo de ser eu para ser todos, espaço e tempo, sem forma nem limite. Sei que tudo é alternância, principio e fim. Por isso olho a pandemia com olhos de futuro, porque ela veio para mudar tudo, através dos passos já dados e da dor de muitos. Ouço dizer que voltaremos ao que era. Lutam por isso, como reter as águas de um imenso mar. A luta não tem direção, nem caminho, nem destino. Estes bonecos de barro pertencem aqui, sugeitos às Leis Naturais de onde nasceram.
Meu dia de isolamento pode ter muitos afazeres ou ser apenas um dia de preguiça, de sono, de contemplação ou até de ter a TV ligada para ver a dor do mundo. Ontem e hoje tentei melhorar um casaco que é grande para o meu corpo. Há dias desenhei rostos e corpos a correr. Tudo isto serve para me sentir útil porque assim volto um pouco ao que já fui. Na ilusão de agarrar o tempo, segurá-lo no coração doente com o amor à vida. Assim e embora velha e só, vou passando os dias sem olhar o espelho e sem sentir o vento.
Os dias passam em ondas de luz.
Sem chuva. Sem outono.
Os humanos choram nas despedidas.
Cada um leva a sua cruz.
Chegados ao limite o início vem.
Vamos aprender novas ilusões.
Aprender com quem nada tem.
Cada ciclo acaba como acaba,
em gritos, sangue e até flores.
E quando outro começa
todos sonham com outras vidas,
fáceis, alegres isentas de dores.
Mas o sonho não é viável
porque no interior de cada um
comanda o ego todo poderoso
que esquece tudo além de si.
E a Natureza vibra e vive e sabe
como marcar o inicio e o fim.
Assim vivemos todos, entre a lágrima e o recolhimento. Fecho os olhos, nem quero ouvir. Mas eu sei que está presente, como um castigo e que muitos milhões ainda não entenderam como tal. E querem voltar ao que foi e querem continuar impunes perante os crimes ambientais e os crimes contra os seus semelhantes. Como fazer para que se torne verdadeiro o amor pela natureza onde estamos incluidos?
É o manto que me cobre.
É o pão que me alimenta.
É a prece que socorre
quando a dor me atormenta.
É o que sou e o que fui.
É a lembrança consumida.
É a ação em cada passo.
É o que fica de uma vida.
É o fim desta memória.
Nada sei para lá do tempo.
Acaba-se aqui a história
de alguém que vai no vento.